História

Dia do Ferroviário: A história de um maquinista que salvou vidas 1ok39

No dia 30 de abril é comemorada a data em homenagem ao profissionais que, nos trilhos, ajudam o País a crescer

ADAMO BAZANI

Diariamente, milhões de pessoas e uma quantidade expressiva (mas que poderia ser maior) de cargas se deslocam pelos sistemas de trilhos.

É verdade que a malha ferroviária do Brasil poderia e deveria ser maior, o que ajudaria a mobilidade urbana e até o barateamento dos produtos básicos para a indústria e para o dia a dia do cidadão, já que o custo do transporte e frete cairia bem com o transporte sobre trilhos.

O erro do Brasil não foi a “opção rodoviária”, propriamente dito, mas esquecer e sucatear as ferrovias em detrimento dos automóveis. Na verdade, há espaço e necessidade para tudo: trens, metrô, ônibus, caminhões, carros, motos e, claro, o transporte hidroviário, outro potencial pouco aproveitado. Várias nações seguiram este entendimento: investir em transporte rodoviário, mas sem necessariamente colocar o ferroviário em segundo plano para isso.

Independentemente dessa discussão, os ferroviários contribuíram e contribuem ainda muito para o desenvolvimento do País.

Para homenagear estes profissionais, republicamos uma matéria que conta a história de um “ferroviário-raiz” de Paranapiacaba, que com amor à profissão e perícia conseguiu salvar vidas.

HISTÓRIA: Paranapiacaba e um modesto herói da ferrovia 4k671r

Lugar de onde se avista o mar: Este é o significado da palavra Paranapiacaba, em tupi-guarani.

Paranapiacaba é uma vila criada pelos ingleses entre 1865 e 1867 para moradia dos ferroviários da linha Santos – Jundiaí, uma das ligações ferroviárias pioneiras do Brasil.

Pertencente a Santo André, no ABC Paulista, a vila é cercada por belezas naturais, sendo possível do “planalto” ver mesmo o mar no litoral sul, desde que a característica neblina da Serra do Mar não baixe e deixe o clima com um ar tipicamente londrino.

A vila também é marcada por diversas histórias que envolvem grandes empreendedores, como Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, idealizador da linha; governos; investidores internacionais e grandes barões do café, já que o principal objetivo da ligação ferroviária foi inicialmente facilitar a exportação da produção, com o escoamento do produto do interior paulista até o Porto de Santos e, de lá, para ao mundo.

Também marcou a história da chamada Vila Inglesa, que tem até uma réplica do relógio Big Ben, o trabalho anônimo dos milhares de ferroviários que aturaram no ir e vir de pessoas e mercadorias e na construção de uma sociedade que deixava de ser rural para se tornar predominantemente urbana.

Um destes profissionais foi Romão Justo Filho.

Filho de ferroviário também, Romão começou a trabalhar antes dos 13 anos como limpador de trens. Naquela época, não havia regulação sobre o trabalho infantil.

Logo no início de sua carreira, Romão recebeu uma missão: deixar um trem tinindo para receber o Rei Alberto, da Bélgica, em 1920. A visita era tão importante que teve cobertura da imprensa e até virou selo oficial dos correios.

Selo dos correios na ocasião da vista do Rei Alberto

Romão sabia dessa responsabilidade. Trabalhou tanto que deixou o trem perfeito, mas se cansou demais e não conseguiu ver o rei ar.

O sonho do jovem mesmo era ser maquinista, o que foi conquistado anos depois.

Em 29 de julho de 1956, o nome de Romão entraria para a história da Vila e da ferrovia no Brasil, apesar de ser pouco divulgada.

O sistema de tração era o funicular.

Grandes máquinas fixas ficavam em cada um dos cinco patamares com cabos que ajudavam os trens movidos a carvão a subir e a descer a Serra do Mar.

Estes cabos ficavam presos sob os trens Locobreque, de fabricação inglesa, e se estendiam pelos trilhos.

Romão Justo Filho ao lado de máquina fixa

Cabo que tracionava o Locobreque. Acervo: ABPF- Associação Brasileira de Preservação Ferroviária/Internet

Ocorre que neste dia 29 de julho de 1956, um dos cabos se rompeu, bem sob a composição comandada por Romão.

A filha do maquinista, Ada Alonso Justo Bazani, disse ao Diário do Transporte que outros acidentes semelhantes ocorreram, com resultados trágicos. Mas, uma manobra realizada com muita perícia e fé evitou mais uma tragédia. Foram salvas mais de 150 vidas.

“Meu pai sempre foi de muita fé mesmo. Levava consigo um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Ele sempre contava que quando o cabo rompeu, pegou a imagem, pensou em Jesus Cristo e teve a tranquilidade de acionar a tenaz e vagarosamente ir parando o trem. Se parasse com tudo ia descarrilar e isso já tinha acontecido antes com vários mortos” – relembra.

Numa edição da Revista Ferrovia dos anos 1980, o próprio Romão Justo Filho relatou o que ocorreu no dia. O maquinista disse que teve um pressentimento de que algo fora do normal poderia ocorrer.

“Naquele dia parecia que eu estava com um pressentimento. Dormi mal, tive sonhos perturbadores e acordei preocupado. Fui trabalhar sem muita vontade, como se eu estivesse adivinhando que alguma coisa errada ia acontecer. A máquina nº 2 estava com defeito e eu pedi para trocá-la e, em Paranapiacaba, troquei pela nº 3. Engatei no cabo, liguei o vapor com toda a força testando a segurança. O fiscal do patamar olhou, achou que estava tudo em ordem e comecei a descer. Logo em seguida ouvi um estouro: o cabo tinha se partido” – relembrou Romão à revista.

O foguista, que ajudava Romão na época, era Adriano Souza Andrade, que foi outro herói na ocasião.

O maquinista Romão Justo Filho e o foguista Adriano Souza Andrade no Locobreque

Pela sua perícia, o maquinista de Locobreque recebeu um prêmio em dinheiro correspondente a dois meses de salário que o ajudou a construiu sua casa no bairro Jardim, em Santo André, com uma homenagem especial à Padroeira do Brasil: um oratório na parte da frente da residência com duas lampadinhas que ficavam as 24 horas por dia. Quando uma das lâmpadas queimava, já tinha estoque para substituir.

Ada se mudou para esta nova casa em 1957, com o pai, Romão Justo Filho; a mãe Maria Guiomar Alonso e os irmãos mais velhos, Ramón Justo, Dirce Justo e Miriam Justo.

Ao fundo, oratório em homenagem à Padroeira do Brasil na fachada da casa. Na foto de pro volta de de 1965, Ada (à frente) e a irmã Dirce

A casa ficava no número 470 da Rua das Pitangueiras, no bairro Jardim, em Santo André.

A filha do ferroviário se lembra que um dos momentos mais marcantes do bairro foi quando os ônibus da Auto Viação Vila Alpina, que só iam até a Rua das Monções (que ficava mais perto do centro de Santo André) começaram a subir a Rua das Pitangueiras na direção da Vila Guiomar.

Ônibus da Viação Alpina (sucessora da Auto Viação Vila Alpina), já com a pintura dos anos 1980, no centro de Santo André, antes mesmo da construção dos terminais Santo André Oeste e Leste. Linha para a Vila Guiomar sobe a Rua das Pitangueiras até hoje

“Era início dos anos 60. Lembro que logo cedinho, quando o primeiro ônibus da Alpina subiu a Pitangueiras, as pessoas bateram palmas nos portões. A maioria das casas tinha muros baixinhos e ver os ônibus da Alpina subindo e descendo a rua era um programa para as crianças” – se recorda Ada.

Em 22 de dezembro de 1967, quando a ferrovia não estava mais sob a concessão dos ingleses, Romão recebeu uma homenagem da EFSJ – Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. O superintendente da empresa na época era Luís Leite Bandeira de Mello, que colocou uma placa com o nome do maquinista no Locobreque número 04.

As irmãs Miriam Justo (à esquerda) e Ada Justo no museu de Paranapiacaba com placa em homenagem a Romão Justo Filho

PARANAPIACABA TINHA DE TUDO PARA OS FERROVIÁRIOS:

Réplica do Big Ben em Paranapiacaba. Foto: Divulgação Prefeitura de Santo André

Casas de graça, água sem cobrança, mercado, times de futebol, salão de festas, posto médico e mercado.

Os ingleses da companhia SPR – São Paulo Railway ofereciam todas as condições para os ferroviários. Não apenas por caridade, mas era para controlar os trabalhadores e evitar evasão de mão de obra. O Brasil tinha poucos profissionais que atuavam na ferrovia no final do século XIX e formar novos demandaria tempo.

Em Paranapiacaba também ficaram trabalhadores que atuaram na construção civil, quando a vila foi formada. Muitos deles se tornaram depois ferroviários.

A vila recebeu também diversos trabalhadores imigrantes, em especial portugueses, espanhóis e italianos.

O “castelinho” uma mansão com todo luxo para época, com diversos quartos, lareiras, banheiras, ficando num alto do quinto patamar, era um dos exemplos desse controle por parte dos ingleses.

O local era residência do engenheiro-chefe do sistema de trens, normalmente um inglês, e permitia uma visualização privilegiada do pátio principal, das oficinas e da estação.

Há quem diga que na região, a popular expressão “para inglês ver” foi adaptada por causa do castelinho.

Quando um funcionário normalmente relapso começava a trabalhar direitinho no quinto patamar, os colegas brincavam dizendo que não é porque ele era um bom profissional, mas era só “para o inglês ver”.

O mercado de Paranapiacaba, fundado em 1899 para abrigar um empório de secos e molhados e uma lanchonete, tinha de tudo.

Ada explica que os mantimentos chegavam de trem para a Vila.

“Uma parte dos produtos chegava de Santos, pelo porto, além dos pescados, e outra vinha de São Paulo. A gente ficava ansiosa aguardando chegar os produtos fresquinhos” – conta Ada.

O lazer dos ferroviários também era garantido na Vila

O clube União Lyra Serrano era palco de shows e festas, como as de carnaval de época. Foi uma das últimas construções inglesas, erguida em 1936.

Criação dos ingleses e paixão dos brasileiros, o futebol marcou a história de Paranapiacaba também.

Romão Justo Filho em frente ao símbolo do União Lyra Serrano, time de ferroviários

O metalúrgico aposentado Wilson Bazani, marido de Ada, jogou em times de bairros da cidade de Santo André. Ele conta que era difícil de ganhar dos dois clubes da vila ferroviária que contavam com um grande reforço em campo: a neblina

“O jogo estava equilibrado, mas quando baixava a neblina não tinha como ganhar dos times de Paranapiacaba, que eram o Juventus Futebol de Paranapiacaba e o tradicional União Lyra Serrano” – disse Wilson que entre 1963 e 1964 foi jogar contra os times locais pelo Casa Branca Futebol Clube e Associação Atlética Vila Alpina, equipes de bairros de Santo André.

“Lembro de um dia que perdemos de 4 a 1 para a União Lira Serrano. Estávamos jogando pelo Vila Alpina” – complementou.

Wilson Bazani em frente ao local que abrigou o campo de futebol em Paranapiacaba, que conserva ainda os travessões

A movimentação da vila ferroviária gerava oportunidade de negócios para moradores da região, com estabelecimentos comerciais.

Wilson e Ada se lembram, por exemplo, das duas padarias na parte baixa da vila, e pensões. Uma das mais famosas era a Pensão da Dona Celina.

“Na parte de cima da vila, tinha bazar do seu Govões, que me lembro muito bem. Íamos comprar linhas e materiais de costura. Na parte baixa da vila, me lembro de comerciantes turcos que iam de porta em porta vender cortes de tecidos, toalhas de mesa” – conta Ada.

Outra lembrança de Ada era das parteiras da vila, que iam ajudar as mães a dar à luz.

Estas parteiras iam com os “trolinhos”, veículos manuais de pequeno porte, que seguiam pelos trilhos.

“A dona Norina era uma das parteiras mais famosas de minha época” – diz Ada.

A vila hoje não recebe mais trens de ageiros, somente de cargas. O o pelo transporte público é por ônibus. Nas cidades de Rio Grande da Serra e de Santo André, o ageiro deve pegar um ônibus da Viação Ribeirão Pires, uma empresa que marcou também a história da Vila quando começou a servir a parte alta da Vila, com ponto final em frente ao Cemitério Bom Jesus, popularmente conhecido como Cemitério de Paranapiacaba.

O cemitério foi fundado em 25 de julho de 1890 também pelos ingleses.

Segundo a prefeitura de Santo André, responsável pela Vila de Paranapiacaba, na época ocorreu uma epidemia muito forte que levou à morte centenas de operários e ferroviários, que estando longe de seus lares foram sepultados no local. Conhecido também como Cemitério Bom Jesus de Paranapiacaba, foi tombado como patrimônio histórico pelo município, já que seus jazigos são em sua grande maioria construções antigas datadas daquela época.

Mesmo não recebendo mais trens regulares de ageiros, o local ainda guarda seus ares de vila inglesa e um eio por Paranapiacaba é uma ótima oportunidade de viajar no tempo e estar mais perto da natureza.

Adamo Bazani, jornalista especializado em transportes

Comentários

Deixe uma respostaCancelar resposta 2p5c4z

Descubra mais sobre Diário do Transporte 5w136p

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter o ao arquivo completo.

Continue reading