ENTREVISTA: “O cliente está ditando as regras de como deseja consumir transporte na cidade”, diz diretor da Transdata 1p2t5u
Publicado em: 19 de março de 2018 1h1h1a

Saber ouvi-lo é a única forma de resgatar o transporte coletivo como qualificador das cidades, diz Rafael Teles
ALEXANDRE PELEGI
Interoperabilidade… essa palavra resume o que mais impactou Rafael Teles, Diretor de Produtos da Transdata Smart, na 6ª Conferência e Exposição Internacional IT-TRANS, evento promovido pela União Internacional de Transportes Públicos (UITP) em Karlsruhe, Alemanha, entre os dias 6 e 8 de março.

Local da 6ª Conferência e Exposição Internacional IT-TRANS, promovida pela UITP em Karlsruhe, Alemanha
O Diário de Transporte conversou com Rafael, que nos contou quais, a seu ver, foram as grandes novidades da tecnologia e de que forma elas poderão impactar o sistema de transporte coletivo. Além dele, outros quatro diretores da empresa também participaram da Conferência.
De saída, Rafael voltou ainda mais convencido de que a tecnologia hoje, e cada vez mais, tornou-se uma aliada definitiva (e decisiva) na transformação dos sistemas de transporte.
“O usuário do transporte – seja ele realizado por ônibus, metrô, trem, ou por aplicativos – não está mais aceitando a qualidade ruim do que lhe é ofertado. Hoje ele não repete mais as mesmas rotinas de deslocamento. Graças à tecnologia, ele descobriu uma nova maneira de consumir transporte nas cidades”, afirma Rafael.
Mas atenção: ao invés de aplicativos de transporte individual, Rafael está falando de soluções que permitem ao usuário cumprir seus desejos de deslocamento. E nada, segundo ele, acabará com o transporte de massa. “É uma ilusão acreditar que os aplicativos de transportes de ageiros são a solução para a mobilidade urbana. Basta fazer contas, para descobrir que isso é impossível diante do espaço das ruas e avenidas de uma cidade”.
Rafael conta que sua grande curiosidade ao ir ao evento foi justamente descobrir em que, e como, os países europeus evoluíram nos últimos anos. E confessa sua surpresa ao ver como determinados países deram um salto gigantesco na questão da bilhetagem.
E voltamos à palavra que abriu esse texto: interoperabilidade.
Rafael conta que os países europeus estão preocupados em desenvolver sistemas de bilhetagem baseados em conta, em substituição aos tradicionais sistemas card-centrics, ou seja, baseados em cartões físicos, como os usados no Brasil, e que ainda predominam em todo o mundo.
“Tudo precisa se conversar”, ele diz, se referindo às formas de pagamento nos meios de transporte. Os europeus perceberam que hoje o usuário do transporte quer a liberdade de montar seus roteiros, de definir suas escolhas. “Com o aumento da mobilidade, hoje é cada vez mais comum as viagens entre países, pessoas que moram numa cidade na fronteira e precisam se deslocar para outra cidade próxima, mas do outro lado, em outro país. A questão do cartão físico torna-se um limitador”.
É a mesma situação do morador da Região Metropolitana de São Paulo, que trafega entre cidades próximas e precisa portar um cartão do ônibus de sua cidade, um cartão BOM para o ônibus da EMTU e um Bilhete Único para andar na capital paulista.
Este foi um ponto que impressionou negativamente uma visita recente de uma delegação de autoridades de transportes da região metropolitana de Turim (Itália) à região do ABC paulista (veja aqui). Os profissionais e especialistas italianos se incomodaram com a falta de integração tarifária e tecnológica entre ônibus municipais, ônibus metropolitanos comuns, ônibus e trólebus da Metra, Metrô e TM.
Como evitar isso? Como fazer os sistemas conversarem? É possível usar apenas um meio de pagamento?
Rafael diz que sim, e isso não é novidade. Ele aponta para os avanços do sistema chamado ABT – Based Ticketing, em tradução livre “Bilhete baseado em conta”. Em resumo, ao invés do valor da agem estar no bilhete físico (Bilhete Único ou cartão BOM, por exemplo), ele está armazenado na nuvem, ou seja, em servidores do sistema de transporte, atrelado a uma conta em nome do usuário.
O cartão de transporte tradicional, portanto, não carrega nenhum valor armazenado no chip, ele serve apenas como identificador do usuário. Com esse conceito, o próprio cartão a a ser desnecessário: o usuário pode usar diferentes mídias para se identificar no sistema de transporte – códigos QR, sua carteira de habilitação (CNH), cartão bancário, celular, etc, e sempre sincronizá-los com sua conta individual na nuvem.
Assim, explica Rafael, os validadores não inserem dados no cartão de transporte, eles servem apenas para identificar o ageiro, e debitar o valor da viagem em sua conta na nuvem.
O usuário, assim, pode carregar créditos em sua conta de forma remota, sem precisar se utilizar de máquinas físicas para esta operação.
No caso da Europa, conta o diretor da Transdata Smart, o sistema permite que o cidadão circule por diferentes cidades, de diferentes países, apenas portando uma mídia que o identifique. “É o fim da lógica de cobrança por giro de catraca, já que os serviços oferecidos fazem parte de uma rede, com pagamentos integrados”, explica Rafael.
“Lá, como aqui, a queda na demanda do transporte coletivo é um fato”, atesta Rafael. “Ou seja, esse não é um problema exclusivamente nosso, mas resultado direto de uma realidade que tem colocado o consumidor de transporte no centro do sistema”, diz.
Essa nova realidade, acredita Rafael, é o que tem levado a uma crescente queda na demanda dos sistemas de transporte coletivo em todo o mundo, e não só no Brasil. Por esse entendimento, atribuir a culpa a perda de ageiros do transporte tradicional apenas aos aplicativos, segundo ele, é um erro.
“Na Alemanha, por exemplo, o Uber é proibido, e lá se detectou uma queda na demanda nos modos de transporte de massa. Ou seja, eles perceberam que é preciso entender a necessidade do usuário, e através da tecnologia dar-lhe liberdade de escolha para que possa realizar seus deslocamentos”.
Em uma palavra: tornar o transporte coletivo mais atrativo, fato que os europeus perceberam rapidamente, e estão trabalhando e pesquisando para atender e solucionar. Segundo Rafael, eles entenderam que isso só é possível “se o sistema atender às conveniências do usuário”.
“Trata-se de abrir as catracas para o ageiro… Mostrar a ele que é possível fazer opções para se locomover nas cidades sem precisar portar diferentes bilhetes ou cartões, bastando apenas se identificar de múltiplas formas, usando não necessariamente um cartão físico de transporte, como o Bilhete Único… Inserir mecanismos de bilhetagem que o permitam fazer a combinação de diferentes modais para realizar sua viagem de forma rápida, confortável e barata”, ele afirma
A região Metropolitana de São Paulo é um ótimo exemplo para o que Rafael diz: imagine definir um meio único de pagamento, bastando ao usuário apenas se identificar como consumidor a cada vez que utilizar um meio de transporte. “Que pode ser ônibus, metrô, trem, bicicleta compartilhada, até aplicativos de transporte”, ele afirma.
Hoje nosso sistema exige postos de recarga, algo que desapareceria num sistema ABT.
“Esta é uma maneira de trazer o consumidor para o sistema de transporte. Em Londres testou-se o sistema de pós-tarifação, com o cliente vinculando seu cartão de crédito como forma de pagamento. A adesão foi menor do que o esperado. As autoridades de lá estudaram o motivo, e descobriram que as pessoas temem perder o controle de seus gastos mensais”. Ou seja, saber antes quanto vai gastar para se locomover na cidade é uma informação essencial para o cidadão.
Estamos caminhando para a situação em que o celular será utilizado como validador. Rafael dá o exemplo de uma parceria entre a startup Moovit e o Governo da Catalunha, que vai experimentar esse formato em Barcelona.
Estamos chegando ao “Smart Ticketing”, a bilhetagem inteligente, uma evolução da bilhetagem eletrônica. É um sistema de tarifação construído a partir da experiência do usuário. “E o que o usuário exige é que os sistemas de bilhetagem interoperem, ele quer usar um único tíquete para transitar em qualquer cidade, e em qualquer modo de transporte”, diz Rafael.
E aí surge outra sigla: MaaS – Mobility as a Service, ou em português Mobilidade como Serviço. “Trata-se de um serviço que combina as opções de diferentes fornecedores de transporte num único pacote”, explica Rafael.
“Imagine você um serviço de Maas mensal, comprando um pacote que lhe seja conveniente”, ele explica. “Você monta seu pacote a partir de sua necessidade, com um número de viagens combinando modos de transporte público tradicional (ônibus, trem e Metrô), mais um número de viagens de táxi, e até mesmo algumas viagens de aplicativos, e até mesmo aluguel de um carro compartilhado…”.
“O MaaS é um sistema que oferece serviços de mobilidade que combinam diferentes modais, e o usuário tem direito a tudo a partir de uma mensal. Há serviços que oferecem pacotes de mobilidade intermodal mediante s mensais ou semanais, por exemplo. Por hora, são experiências restritas, mas algumas iniciativas já apresentam resultados interessantes”.
Rafel conclui: “Parece claro que ao se mudar os meios de pagamento, há uma mudança imediata nas ofertas de transporte”. O que ele diz é que com mais poderes em mão, o consumidor de transporte acaba por definir como a oferta de transporte deve ser desenhada, e não o oposto, com ocorre hoje.
Um exemplo: há linhas de ônibus que existem há mais de décadas em cidades como São Paulo, mas será que elas precisam realmente existir da forma como estão? Por que o usuário tem de se adaptar ao que o sistema de transporte oferece a ele, e não o contrário?
Com o uso da tecnologia, afirma Rafael, amos a ter online, em tempo real, quase uma pesquisa de Origem e Destino. E com isso, amos a discutir a implantação de serviços de transporte porta-a-porta compartilhados e, o mais importante, integrados com os sistemas de transporte de massa. Os gestores de transporte arão a oferecer linhas e serviços que estejam em consonância com os desejos de viagem do usuário e consumidor final.
“Trazer o usuário para o sistema de transporte coletivo é isso: adequar a oferta às suas necessidades. Isso permitirá calibrar o sistema, redefinindo linhas, mudando itinerários, sempre em função do que o usuário está nos dizendo a partir de suas escolhas”.
Um dos resultados imediatos desse sistema é ter transparência na tarifação, e inclusive permitir um valor justo para cada modo utilizado, conclui Rafael Teles.
A Transdata Smart está trazendo agora a tecnologia CIPURSE®, que tem como um de suas inúmeras finalidades habilitar a interoperabilidade de sistemas de diferentes fornecedores. Esse sistema foi desenvolvido pela OSPT – Open Standard for Public Transportation Alliance (Padrão Aberto para Transporte Público), com vistas a atender às necessidades das autoridades de trânsito locais e regionais para os sistemas de cobrança de tarifas automáticas, baseadas em tecnologias de cartões inteligentes e medidas de segurança avançadas.
A Transdata está fazendo parte do grupo que está estudando, por exemplo, o uso desse sistema, que já foi escolhido pelo CONTRAN para ser o padrão da nova CNH – Carteira Nacional de Habilitação. Isso poderá tornar a própria CNH um meio de validação de pagamentos de meios de transporte.
Por tudo que diz, Rafael finaliza dizendo não aceitar a justificativa de que o transporte coletivo vem perdendo ageiros por causa dos aplicativos de transporte. E usa uma imagem bem-humorada para explicar seu ponto de vista:
“É como o fim do casamento. As pessoas preferem dizer que o casamento acabou porque outra pessoa surgiu e seduziu um dos parceiros. Todos sabem que isso não é verdade. A sedução só teve sucesso porque o parceiro já estava insatisfeito com a relação. É a mesma coisa com os transportes coletivos. Se o que me oferecem não me agrada, e eu tenho outras formas de chegar ao meu destino, por que não usá-las?”, ele questiona.
A demanda está caindo também porque as pessoas estão deixando de viajar, Rafael afirma. Mais pessoas hoje trabalham em casa, ou até mesmo se mudam para locais próximos ao emprego.
Quando pergunto a ele o que seria preciso para fazer as pessoas saírem de casa e se deslocar usando ônibus, metrô, ou outros meios, ele responde:
“É preciso tornar as cidades mais agradáveis. O desejo da viagem está atrelado não só à necessidade, mas também à vontade de sair e consumir a cidade. Se a cidade é hostil, se ela não me fornece opções para lazer e recreação, ou torna difícil para mim até mesmo chegar a uma estação de trem ou metrô… se eu não tenho onde esperar o ônibus, se as calçadas são ruins (e se até mesmo em muitos caso sequer tem calçadas), eu vou procurar outra forma de chegar a meu destino se eu realmente precisar ir, ou vou preferir ficar em casa, e não realizar a viagem”.
A tecnologia, segundo vê Rafael, é um catalisador para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Ela não é a solução, mas se for utilizada pelo setor público de forma inteligente, pode ajudar muito na melhoria da mobilidade urbana.
Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes